O cheiro da pólvora não foi capaz de apagar aquele sorriso.
O denso odor da carne queimada pelo tiro a queima roupa não foi sólido o
bastante pra desfazer o sorriso que brotou do lábio carmim. O sangue escarlate,
que estragava o papel de parede, estragava o carpete e deixava marcas em seus
sapatos parecia conversar com a cor daqueles lábios que sorriam a meia-luz. No
quarto, agora inundado pelo sangue que a morte recolhia em frascos decorados,
ela sentou-se na cama, escorregando nos lençóis de cetim que ainda recendiam ao
amor das loucas noites de verão. Olhou para o corpo no chão, estirado. Deixou
que uma lágrima brotasse de seu olho esquerdo e tocasse a carne dos lábios que
não eram os únicos a beijar a boca do morto. Deixou que a gota pingasse nas
coxas que já não podiam mais segurar seus ventres apertados, enquanto sem
fôlego ela urrava os berros do bicho traído, da mulher trocada, da esposa
atenciosa, da amante dispensada. E deixou que sua boca, que era lábios e dentes
e fogo e amor tornasse ao sorriso limitado pelo vermelho, que era sangue e
batom e amor e fogo. Sorriu vingada. Prendeu a arma de volta a coxa,
levantou-se, arrumou os seios no sutiã de renda, olhou-se no espelho, limpou a
lágrima.
“Viúvo é quem morre” foi o que pensou ao fechar a porta do
quarto e ganhar as ruas sorrindo para a lua que recitava poesias em seu ouvido.