Mentaótico

Ótica mental cheia de hortelã!

Meu bem, se soubesses quanto odeio que te aches normal. Quanto odeio essa tua linha reta e esse teu hálito cheiroso. Quanto odeio que me faças me enquadrar. Vejo em tuas lágrimas e em teu discurso a fragilidade de tua normalidade, a estúpida mentira que tu vestes todo dia, feita do tecido que tecestes meu uniforme. Ah meu bem, desculpa. Desculpa mas hoje quis te esfaquear. Quis que como lâminas afiadas minhas palavras te atravessassem, te perfurassem, te rasgassem, dilacerassem  cada pedaço da tua carne.

Te libertaria meu amor. Te despiria da hipocrisia dos nossos atos, da estúpida vida que construímos para todos nós. E tu não morrerias. Sangaria o sangue podre e azul das morais erguidas em berços de alumínio torcido, de madeira compensada. Choraria as lágrimas das crenças descontruídas e seus olhos queimariam como se as chamas de sete infernos caissem sobre eles, seus ouvidos vibrariam com a voz de todos os anjos caídos e tu acordarias numa viagem de ácido.

Quando tudo acabasse, quando minhas lâminas estivessem cegas de tanto tocar seus ossos e tuas virtudes, quando estivesse seco e cansado das verdades disparadas insensíveis e monstruosas sobre tua pele de sonhos destruídos te encontraria nua e apavorada, perdida no caminho que nunca levou a lugar nenhum. Seus olhos logo se acostumariam com a luz, seu nariz logo inspiraria o novo ar e teu velho corpo logo retornaria ao pó de onde veio.

Mas tive pena meu amor e deixei que tu levastes tuas lágrimas para a cama e as cobrisse com o lençol de algodão, enquanto eu, anestesiado, tirava o uniforme da máquina, o colocava na mala e saia pela porta.

Mais uma vez.

Sempre olhando pra trás.

se não é amor é doença.
mas se é amor, por que é assim?
se fosse doença tinha remédio
mas se é amor, qual seria a causa?

feito vômito, me escapa
sai das minhas entranhas
me rasga e explode

feito febre, me consome
queima meu peito e minha cabeça
queima minha virilha
me alucina

se matasse rápido
se apagasse rápido
se passasse rápido

mas ainda me prende na cama
ainda me tira o sono
ainda me irrita e me incomoda
e me faz ser outro
psicosomático
hipocondríaco
homeopatia meu cu quando o assunto é você.
 

Pra ele, café e pouco açúcar. Pra ela, chocolate. Ele sorria tímido para a xícara de café e mexia quase nervoso a pequena colher. Ela cobria o decote, se ajeitava no banco alto demais para os dois. Ele enrolava o cabelo, agitava as pernas e justificava uma vida mais morna. Ela sorria e contava sobre uma vida mais quente. Ele limpava o bigode com a língua. Ela abaixava a xícara. Descompassados, às vezes cavavam com as colheres os fundos das xícaras. Buscando a voz, buscando o riso, buscando anos já bebidos enquanto o aroma do que foram desfazia-se no ar.

Ele ia pra longe, em direção a Pasárgada, com destino marcado pra lugar nenhum. Ela pertencia-se, enraizava. Ele desejando os cigarros, ela detestando a fumaça. Sentados alto demais para tocar o chão, eles conversavam em tom ameno as vidas mutantes. Ele o vermelho, da euforia juvenil, da rebeldia adolescente, do mosh que foram. Ela o azul, da paciência que conforta, da paciência que congela.

Ele bermuda e ela calça. Ele cheirando sal e ela flor. Ele a brisa, ela a pedra.

Ela 80. Ele 90.

Eles.

Ele...


Levou. Levou consigo tudo que pode num só gesto. Em poucas palavras. E não podia nem saber se realmente se importou. Mas levou. De uma só vez arrancou as ervas e costurou os cortes. Cessou o sangramento. Assim, desse jeito, como quem esbarra o estranho na rua, passou e saiu.

Não gritou. Talvez não tivesse mais força para. Nem chorou, não queria, não sentia. Carregou o peso que levantou e saiu. Com a cabeça erguida e um cigarro na mão direita ele andou e atravessou todas as portas. As que estavam fechadas ele não precisou estourar, mas faria o necessário, faria o que fosse preciso.

Caminhou firme pelos corredores retirou dali tudo que era seu. Pesado, ele andou leve em seus passos duros, marcados e compassados, sem olhar pra trás, sem deixar que o arrependimento sombreasse seu olhar e balançasse suas pernas. Mirou a sua frente e quando bateu a última porta atrás de si sorriu sincero para a calçada.

Não olharia mais com medo para o espelho. Não teria mais nenhum inimigo do outro lado, não se machucaria mais com a visão do que havia se tornado. Por último, deixou todos seus fardos no lixo de qualquer vizinho. Libertou-se.

Viver é uma sentença de morte. É se matar, um pouco a cada dia, deixando lascas e pedaços de tudo que você é, de tudo que você foi. Viver é entregar-se a dor e senti-lá, deixar ela queimar as veias e bombear negra as têmporas em um desespero sufocante.

A fumaça queima as narinas e o tabaco é incapaz de livrá-lo dos demônios que o assombram. Em silêncio olhando as estrelas, ele procura em qual delas poderia pousar, qual estaria longe o bastante que o fizesse já não sentir.

As 80 batidas por minuto, tão constantes e tão estáveis já não se sentem. O coração é a pedra gelada enterrada tão fundo no peito. Ele anseia pelas lágrimas que exaustas já não saem e busca dentro de si um pouco de alívio na pessoa que um dia foi. Não se dá o direito de arrepender-se do que é, pois está exatamente onde quis chegar, mas agora já não sabe mais o que será.

O homem em formação que ainda procura dentro de si o menino que agora parece morto, engolido pela vida e por um mundo que sem ter um fim anunciado vive o fim dos tempos desde que qualquer tempo decidiu passar. Socorrendo a si mesmo tenta evitar que o sabor metálico preso aos dentes torne-se um amargor profundo.

Ainda em silêncio ele grita por ajuda e no escuro conta apenas com suas próprias mãos.

Ele perdeu a fé.

Fatias mi cariño

Meu bem, se soubesses quanto odeio que te aches normal. Quanto odeio essa tua linha reta e esse teu hálito cheiroso. Quanto odeio que me faças me enquadrar. Vejo em tuas lágrimas e em teu discurso a fragilidade de tua normalidade, a estúpida mentira que tu vestes todo dia, feita do tecido que tecestes meu uniforme. Ah meu bem, desculpa. Desculpa mas hoje quis te esfaquear. Quis que como lâminas afiadas minhas palavras te atravessassem, te perfurassem, te rasgassem, dilacerassem  cada pedaço da tua carne.

Te libertaria meu amor. Te despiria da hipocrisia dos nossos atos, da estúpida vida que construímos para todos nós. E tu não morrerias. Sangaria o sangue podre e azul das morais erguidas em berços de alumínio torcido, de madeira compensada. Choraria as lágrimas das crenças descontruídas e seus olhos queimariam como se as chamas de sete infernos caissem sobre eles, seus ouvidos vibrariam com a voz de todos os anjos caídos e tu acordarias numa viagem de ácido.

Quando tudo acabasse, quando minhas lâminas estivessem cegas de tanto tocar seus ossos e tuas virtudes, quando estivesse seco e cansado das verdades disparadas insensíveis e monstruosas sobre tua pele de sonhos destruídos te encontraria nua e apavorada, perdida no caminho que nunca levou a lugar nenhum. Seus olhos logo se acostumariam com a luz, seu nariz logo inspiraria o novo ar e teu velho corpo logo retornaria ao pó de onde veio.

Mas tive pena meu amor e deixei que tu levastes tuas lágrimas para a cama e as cobrisse com o lençol de algodão, enquanto eu, anestesiado, tirava o uniforme da máquina, o colocava na mala e saia pela porta.

Mais uma vez.

Sempre olhando pra trás.

Leia a bula

se não é amor é doença.
mas se é amor, por que é assim?
se fosse doença tinha remédio
mas se é amor, qual seria a causa?

feito vômito, me escapa
sai das minhas entranhas
me rasga e explode

feito febre, me consome
queima meu peito e minha cabeça
queima minha virilha
me alucina

se matasse rápido
se apagasse rápido
se passasse rápido

mas ainda me prende na cama
ainda me tira o sono
ainda me irrita e me incomoda
e me faz ser outro
psicosomático
hipocondríaco
homeopatia meu cu quando o assunto é você.
 

Expresso

Pra ele, café e pouco açúcar. Pra ela, chocolate. Ele sorria tímido para a xícara de café e mexia quase nervoso a pequena colher. Ela cobria o decote, se ajeitava no banco alto demais para os dois. Ele enrolava o cabelo, agitava as pernas e justificava uma vida mais morna. Ela sorria e contava sobre uma vida mais quente. Ele limpava o bigode com a língua. Ela abaixava a xícara. Descompassados, às vezes cavavam com as colheres os fundos das xícaras. Buscando a voz, buscando o riso, buscando anos já bebidos enquanto o aroma do que foram desfazia-se no ar.

Ele ia pra longe, em direção a Pasárgada, com destino marcado pra lugar nenhum. Ela pertencia-se, enraizava. Ele desejando os cigarros, ela detestando a fumaça. Sentados alto demais para tocar o chão, eles conversavam em tom ameno as vidas mutantes. Ele o vermelho, da euforia juvenil, da rebeldia adolescente, do mosh que foram. Ela o azul, da paciência que conforta, da paciência que congela.

Ele bermuda e ela calça. Ele cheirando sal e ela flor. Ele a brisa, ela a pedra.

Ela 80. Ele 90.

Eles.

Ele...


Sangria

Levou. Levou consigo tudo que pode num só gesto. Em poucas palavras. E não podia nem saber se realmente se importou. Mas levou. De uma só vez arrancou as ervas e costurou os cortes. Cessou o sangramento. Assim, desse jeito, como quem esbarra o estranho na rua, passou e saiu.

Não gritou. Talvez não tivesse mais força para. Nem chorou, não queria, não sentia. Carregou o peso que levantou e saiu. Com a cabeça erguida e um cigarro na mão direita ele andou e atravessou todas as portas. As que estavam fechadas ele não precisou estourar, mas faria o necessário, faria o que fosse preciso.

Caminhou firme pelos corredores retirou dali tudo que era seu. Pesado, ele andou leve em seus passos duros, marcados e compassados, sem olhar pra trás, sem deixar que o arrependimento sombreasse seu olhar e balançasse suas pernas. Mirou a sua frente e quando bateu a última porta atrás de si sorriu sincero para a calçada.

Não olharia mais com medo para o espelho. Não teria mais nenhum inimigo do outro lado, não se machucaria mais com a visão do que havia se tornado. Por último, deixou todos seus fardos no lixo de qualquer vizinho. Libertou-se.

Saída

Viver é uma sentença de morte. É se matar, um pouco a cada dia, deixando lascas e pedaços de tudo que você é, de tudo que você foi. Viver é entregar-se a dor e senti-lá, deixar ela queimar as veias e bombear negra as têmporas em um desespero sufocante.

A fumaça queima as narinas e o tabaco é incapaz de livrá-lo dos demônios que o assombram. Em silêncio olhando as estrelas, ele procura em qual delas poderia pousar, qual estaria longe o bastante que o fizesse já não sentir.

As 80 batidas por minuto, tão constantes e tão estáveis já não se sentem. O coração é a pedra gelada enterrada tão fundo no peito. Ele anseia pelas lágrimas que exaustas já não saem e busca dentro de si um pouco de alívio na pessoa que um dia foi. Não se dá o direito de arrepender-se do que é, pois está exatamente onde quis chegar, mas agora já não sabe mais o que será.

O homem em formação que ainda procura dentro de si o menino que agora parece morto, engolido pela vida e por um mundo que sem ter um fim anunciado vive o fim dos tempos desde que qualquer tempo decidiu passar. Socorrendo a si mesmo tenta evitar que o sabor metálico preso aos dentes torne-se um amargor profundo.

Ainda em silêncio ele grita por ajuda e no escuro conta apenas com suas próprias mãos.

Ele perdeu a fé.

Ótica mental cheia de hortelã!

Café forte e sem açúcar!