Outro cigarro. Filtro vermelho. Desses que machuca a garganta e pesa nos pulmões. Pesa nas veias. Faz sua pressão cair, te afunda no sofá, bagunça seus pensamentos. Te faz dormir. Bate as cinzas no metal que se aquece, olha a brasa. Outro trago.
Conferindo a música na vitrola lembra-se dos números que deixou de discar. É, não discou mesmo. Não quis. Nunca gostou de telefones... lembra dos números que quis ganhar, dos que precisava ganhar, dos que tinha e daqueles que coloriam folhas e mais folhas. Números.
Pensava no que fazia e faria por eles. No que não contou. Sofria em silêncio naqueles tragos, tentando deixar a música tocar mais alto. Preso nessas redes perigosas de fios de nilon que cortavam mas não prendiam, debatia-se de infelicidade, não podia se sentir completo. Díficil se sentir completo em tempos tão duros. Díficil sentir. Amortecia-se.
Amortecido parava a vitrola. Encostava-se no travesseiro, enxugando lágrimas que poderiam ser de tristeza, mas desciam com o sono de quem tenta não se preocupar. Mas preocupava-se. Ali no travesseiro voltava a fita, guardava as dores que podia enquanto socava o objeto que deveria se adaptar a uma cabeça que só queria no mundo poder explodir. Em penas, em miolos, em ideias. Em números.
Vê-los espalhados, pelo chão e os lençois. Vermelhos, pretos, azuis. Cor de nada. Nem vê-los mais. Quando?
Desculpas se eu não voltar. Não suportei. Perdoa minha ida como perdoou minha chegada uma vez. Parti sóbrio, parti contente. Parti seguro daquilo que estava fazendo ainda que as lágrimas enchessem meus olhos e cruzassem minha face. Elas acabavam num sorriso. Chorava porque conheço a saudade e sei que um dia ela me encontrará. Mas não você. Você nunca mais. Vou ganhar o mundo sem as suas asas, andar pelas ruas descalço de seus cuidados desastrados. Vou pisar em asfalto quente, ganhar bolhas. Vou acabar mais magro e mais seco. Vou acabar com um fim só meu. E o escreverei por conta própria, com minha letra, com meu punho machucado, com meu sangue derramado. Não parti por um desejo sado de sofrer, mas por um desejo claro de viver, viver uma vida que não teria ao seu lado. Vida que não tive. Então, se respiro agora e me entrego a outros caminhos é porque sei que é o melhor que posso fazer, sei que é o melhor de mim. Se cuida. Eu vou me cuidar.
Se penso, já não quero. Quero é sentir. E sentir demais, já não quero. Quero mais é não querer. Poder. Poder sem querer. Querer não é poder. Quero mais é esquecer. Juntar as pontas dessa vida e galopar. Ah, como me canso. Descaso, acaso irrelevante. Quero uma brisa, uma garoa. Um chuva torrencial. De suco gástrico. Ácido.
Já não sentia os sentidos. Sentou-se e chorou. Ali, na soleira da porta, desolado e entregue a ondas soluçantes, afogado nas lágrimas que não cansariam de cair e molhar o chão e deixar marcas em sua camiseta e rasgá-lo por dentro, sangrá-lo das raivas engolidas. Alienou-se num céu turvo de olhos cerrados e vermelhos. Visão confusa, difusa, lacerante de um cenário seco, natural, mórbido e cotidiano. Viu-se mais uma vez ali, na casa que costumava amar, na vida que costumava ter, nos costumes que costumava vestir e chorou.
Chorou pois era tudo que tinha. Não tinha secado, mas tinha morrido. Morreu dia-a-dia, morreu em cada garfada. Deixou a vida esvair em cada passo em direção a porta. Morreu nos cigarros que apagou, nos copos que terminou, morreu em cada contrato fechado, em cada assinatura refeita. Chorava agora, ali na soleira da porta, o próprio enterro. Era o caixão, era o defunto e era a morte. Era o verme que putrificava sua própria carne. Não havia perfume que afastasse o odor. Estava morto e sabia.
Chorou anos seguidos. Da soleira da porta fez túmulo. Ao seu redor, das lágrimas brotava vida, vida de uma natureza sanguessuga, usurpadora das lágrimas do morto. O pé fez-se raiz. Enterrou-se, fundo. Casa, morto, alma, vazio. Fez-se corpo presente e pesado na entrada da casa que amou. Fez-se forte e ramagem da soleira da porta que já não abriria nunca mais. Prendeu-se forte a paredes que exibiam mais histórias do que aquela que fingiu viver. Prendeu-se ali, exilado da vida que renegou.
Desce
do carro. Outra carona, outro desconhecido, outras horas em silêncio se
contorcendo no banco em uma estrada inacabável. Sente o frio já previsto e se
culpa por ter esquecido os casacos. Em cima da cama. Em outra cidade.
Junta
as malas, agradece. Paga. Caminha em direção ao ponto. Ponto de ônibus. De
chegada, de partida. Encosta na mureta e espera. Liga o telefone, disca. Cobra
“Cadê você? Já estou aqui”. Em resposta “10 minutos”. Já se passaram vinte.
Pensa de novo nas blusas que deixou em cima da cama. Pragueja. 30 minutos.
A
nova carona chega. Entra no carro, cumprimenta, silencia. Está a 250km de lugar
nenhum. Não entende pra onde volta ou pra onde vai. Se arrepende por chegar.
“Estou bem”. Tudo certo? “Tudo”. Encurta o assunto, fecha o vidro. Busca o
cigarro que não pode fumar. Pragueja, mentalmente.
Escuta
as novidades. Processa o que escuta, soma ao que leu e se arrepende por vir.
Não se interessa por aquilo. Deixa que as palavras se afundem no silêncio. Não
se preocupa. As lágrimas esquentam os olhos. Não caem. Seriam só outras
lágrimas. Já secaram.
A
paisagem corre pelo vidro do carro. “Tá com fome? Se tiver precisamos pedir
algo”. Só o velho descaso, desinteresse? Não sabe, diz que não tem fome,
silencia de novo. “Tá bravo?”. Não. Arrependido, apegado. “Só cansado, não
dormi direito”.
Chegam.
Desce, abre, fecha. Liga a TV. A novela fora de horário preenche os vazios que
conversa nenhuma tenta cobrir. Serve-se de um iogurte. Insosso. Deita e espera.
Logo o final da semana finda finalmente. Logo chega onde não quer. Logo, pega
outra carona.
É que não fomos mesmo feitos pra durar. A vida é mesmo um sopro e somos espirros de uma existência que é tão leve quanto folhas voando no vento. Acho que não nasci pra durar. Nas fotos vejo o tempo que deixei passar e vejo como vou morrendo nos anos... vejo o sorriso infantil ser contornado pelas barbas de um homem que não tem pretensões de ser por muito tempo. A pele da infância queimada pelos sóis que se esconderam num horizonte que não envelhece comigo. A arrogância é o que me injeta juventude, ou o contrário. Sinto nos ossos as vibrações do tempo que me leva, que me lava, que me entope com as dúvidas dos amanhãs que não enxergo, dos dias que não quero ver.
E sei que não vai durar...
Sentia saudades de um tempo em que cabia num colo. Tempo em que podia se ajeitar e dormir em paz. Preso numa casca maior, ainda sente-se como algo menor. Teme pelo que venha a ser. Se sente sozinho num mundo onde todo mundo é assim, sozinho também. Despreparado, de olhos fechados pra multidão, não quer olhar pro cinza que o rodeia.
E ela era assim, a menina que ele tinha desenhado em folhas de caderno, pautadas em linhas ciano. Tinha as curvas dos recortes topográficos dos morros baseados em peitos e bundas que ele cansou de riscar. Os cabelos voados escuros como o nanquim que teimava em manchar as folhas de baixo. Menina que ele gostava de florear nos sonhos de jardins proibidos, nos pesadelos de luxuriosos infernos. Exatamente a menina que surgia, sempre que ele podia se divertir sozinho, com obscenidades de segredo, segredos desnecessários.
A brasa acesa no escuro recortado pelo quadrado da janela. Era um samba todo, queimando em fumaça branca contrastada no vermelho, forte, poderoso, que radiava de seus cabelos, de sua boca, daquele falso ódio delirando num sorriso irônico. Acordes, notas. Sopro de palavras mudas, silenciadas numa ignorância mútua. Era uma ópera toda, tocada com ênfase, cansada até o último momento, dedilhada num enlace de amores alcoolizados, paixões gravadas em ventanias ao pé de escadarias.
Aquele recorte na janela, beleza fotografada em um olhar sonolento, soprada com a fumaça de outro cigarro, com o fundo de outro copo. Era o relógio grudado torto na parede. Aquele descompasso de minutos e segundos e anos que não voltavam e nem correriam a vontade de quem os vivencia.
Não desenhou. Das linhas que viu só pode ficar com as cores e nem tocou, porque já era tarde, já era madrugada, já era silêncio. Nem tocou, porque do violão só tirava o mi. Nem dó saia dali.
Desce da janela. Calça os sapatos. Abre a porta que já abriu antes. Cruza a cozinha que já cruzou antes. Pisa nas folhas secas da árvore que caduca com o inverno que se aproxima irremediável em um futuro onde essa cena já não vai se repetir. Ele deixa ela ir. Deixa porque precisa, mas sem ter a certeza de que quer. E ela vai, decidida.
Pisa na calçada e fraqueja. Ele sobe as escadas e espera.
Não voltam mais. A janela é fechada e a cena tenta se desfazer, assim como as folhas serão varridas e como a árvore em breve será só galhos. Não que eles não se desejem e não que o cigarro apagado tenha sido o último do maço, mas já é tempo de enfrentarem a si mesmos sozinhos.
Vão lá, ouvir suas músicas... ninguém pode sair de mero espectador agora.
Tão triste e sozinho, deitado fundo no sofá, fugindo dos fantasmas da cama. Se sentia solitário de um jeito novo, solitário de um jeito que só o último de uma espécie saberia como é. Era o único de si. E não conseguia nem se suportar. Queria alguém pra dizer que ama, mas não encontrava no meio do ego que espalhou pela casa. Tornara-se um bicho indomável, ouriçado, cruel consigo mesmo, apaixonado pela sua auto-piedade, esgotado nas batalhas contra os demônios invencíveis. Não conseguia ver verdade em "tudo está cheio de amor". Estava jogando xadrez e não podia vencer pois já não tinha rivais. Via o sol nascer mais uma vez, na insônia de esperar por algo que não queria que chegasse. Precisava crescer. Se livrar... mas que medo que tinha disso. Não queria levantar-se de novo, não queria repetir e repetir e trocar palavras e continuar falando das mesmas coisas.
Pensava na vida que ainda tinha em frente e já se arrependia por ter nascido. Pensava no dia que ia raiar e se arrependia por não ter dormido, pensava na noite que viria depois e se arrependia por ter visto mais um sol se por.
Andava na rua de novo. Com seu tênis branco e encardido, com sua bermuda suja, camiseta arrumada, cabelo desgrenhado, barba por fazer. Mochila vazia presa nas costas. Andava apressado, com os passos de quem quer sair correndo e não quer parar mais, passos de quem se imaginava Forrest.
Olha amor. Mira esses meus olhos. Enxerga nessas rugas meu cansaço. Olha bem amor, por favor, olha agora. Enxerga em mim de novo seu novo amante, enxerga nesse velho corpo seu antigo amor. Esquece as marcas do tempo e do desprezo, esquece as cicatrizes dessa vida arrastada e me ama de novo. Olha pra mim amor.
Conferindo a música na vitrola lembra-se dos números que deixou de discar. É, não discou mesmo. Não quis. Nunca gostou de telefones... lembra dos números que quis ganhar, dos que precisava ganhar, dos que tinha e daqueles que coloriam folhas e mais folhas. Números.
Pensava no que fazia e faria por eles. No que não contou. Sofria em silêncio naqueles tragos, tentando deixar a música tocar mais alto. Preso nessas redes perigosas de fios de nilon que cortavam mas não prendiam, debatia-se de infelicidade, não podia se sentir completo. Díficil se sentir completo em tempos tão duros. Díficil sentir. Amortecia-se.
Amortecido parava a vitrola. Encostava-se no travesseiro, enxugando lágrimas que poderiam ser de tristeza, mas desciam com o sono de quem tenta não se preocupar. Mas preocupava-se. Ali no travesseiro voltava a fita, guardava as dores que podia enquanto socava o objeto que deveria se adaptar a uma cabeça que só queria no mundo poder explodir. Em penas, em miolos, em ideias. Em números.
Vê-los espalhados, pelo chão e os lençois. Vermelhos, pretos, azuis. Cor de nada. Nem vê-los mais. Quando?
Do pó ao pó
Chorou pois era tudo que tinha. Não tinha secado, mas tinha morrido. Morreu dia-a-dia, morreu em cada garfada. Deixou a vida esvair em cada passo em direção a porta. Morreu nos cigarros que apagou, nos copos que terminou, morreu em cada contrato fechado, em cada assinatura refeita. Chorava agora, ali na soleira da porta, o próprio enterro. Era o caixão, era o defunto e era a morte. Era o verme que putrificava sua própria carne. Não havia perfume que afastasse o odor. Estava morto e sabia.
Chorou anos seguidos. Da soleira da porta fez túmulo. Ao seu redor, das lágrimas brotava vida, vida de uma natureza sanguessuga, usurpadora das lágrimas do morto. O pé fez-se raiz. Enterrou-se, fundo. Casa, morto, alma, vazio. Fez-se corpo presente e pesado na entrada da casa que amou. Fez-se forte e ramagem da soleira da porta que já não abriria nunca mais. Prendeu-se forte a paredes que exibiam mais histórias do que aquela que fingiu viver. Prendeu-se ali, exilado da vida que renegou.
Parada
Junta as malas, agradece. Paga. Caminha em direção ao ponto. Ponto de ônibus. De chegada, de partida. Encosta na mureta e espera. Liga o telefone, disca. Cobra “Cadê você? Já estou aqui”. Em resposta “10 minutos”. Já se passaram vinte. Pensa de novo nas blusas que deixou em cima da cama. Pragueja. 30 minutos.
A nova carona chega. Entra no carro, cumprimenta, silencia. Está a 250km de lugar nenhum. Não entende pra onde volta ou pra onde vai. Se arrepende por chegar. “Estou bem”. Tudo certo? “Tudo”. Encurta o assunto, fecha o vidro. Busca o cigarro que não pode fumar. Pragueja, mentalmente.
Escuta as novidades. Processa o que escuta, soma ao que leu e se arrepende por vir. Não se interessa por aquilo. Deixa que as palavras se afundem no silêncio. Não se preocupa. As lágrimas esquentam os olhos. Não caem. Seriam só outras lágrimas. Já secaram.
A paisagem corre pelo vidro do carro. “Tá com fome? Se tiver precisamos pedir algo”. Só o velho descaso, desinteresse? Não sabe, diz que não tem fome, silencia de novo. “Tá bravo?”. Não. Arrependido, apegado. “Só cansado, não dormi direito”.
Chegam. Desce, abre, fecha. Liga a TV. A novela fora de horário preenche os vazios que conversa nenhuma tenta cobrir. Serve-se de um iogurte. Insosso. Deita e espera. Logo o final da semana finda finalmente. Logo chega onde não quer. Logo, pega outra carona.
E sei que não vai durar...
Por ainda ter tempo
Dos cigarros no cinzeiro
Aquele recorte na janela, beleza fotografada em um olhar sonolento, soprada com a fumaça de outro cigarro, com o fundo de outro copo. Era o relógio grudado torto na parede. Aquele descompasso de minutos e segundos e anos que não voltavam e nem correriam a vontade de quem os vivencia.
Não desenhou. Das linhas que viu só pode ficar com as cores e nem tocou, porque já era tarde, já era madrugada, já era silêncio. Nem tocou, porque do violão só tirava o mi. Nem dó saia dali.
Desce da janela. Calça os sapatos. Abre a porta que já abriu antes. Cruza a cozinha que já cruzou antes. Pisa nas folhas secas da árvore que caduca com o inverno que se aproxima irremediável em um futuro onde essa cena já não vai se repetir. Ele deixa ela ir. Deixa porque precisa, mas sem ter a certeza de que quer. E ela vai, decidida.
Pisa na calçada e fraqueja. Ele sobe as escadas e espera.
Não voltam mais. A janela é fechada e a cena tenta se desfazer, assim como as folhas serão varridas e como a árvore em breve será só galhos. Não que eles não se desejem e não que o cigarro apagado tenha sido o último do maço, mas já é tempo de enfrentarem a si mesmos sozinhos.
Vão lá, ouvir suas músicas... ninguém pode sair de mero espectador agora.
Vermelho
Pensava na vida que ainda tinha em frente e já se arrependia por ter nascido. Pensava no dia que ia raiar e se arrependia por não ter dormido, pensava na noite que viria depois e se arrependia por ter visto mais um sol se por.