Mentaótico

Ótica mental cheia de hortelã!

Outro cigarro. Filtro vermelho. Desses que machuca a garganta e pesa nos pulmões. Pesa nas veias. Faz sua pressão cair, te afunda no sofá, bagunça seus pensamentos. Te faz dormir. Bate as cinzas no metal que se aquece, olha a brasa. Outro trago.

Conferindo a música na vitrola lembra-se dos números que deixou de discar. É, não discou mesmo. Não quis. Nunca gostou de telefones... lembra dos números que quis ganhar, dos que precisava ganhar, dos que tinha e daqueles que coloriam folhas e mais folhas. Números.

Pensava no que fazia e faria por eles. No que não contou. Sofria em silêncio naqueles tragos, tentando deixar a música tocar mais alto. Preso nessas redes perigosas de fios de nilon que cortavam mas não prendiam, debatia-se de infelicidade, não podia se sentir completo. Díficil se sentir completo em tempos tão duros. Díficil sentir. Amortecia-se.

Amortecido parava a vitrola. Encostava-se no travesseiro, enxugando lágrimas que poderiam ser de tristeza, mas desciam com o sono de quem tenta não se preocupar. Mas preocupava-se. Ali no travesseiro voltava a fita, guardava as dores que podia enquanto socava o objeto que deveria se adaptar a uma cabeça que só queria no mundo poder explodir. Em penas, em miolos, em ideias. Em números.

Vê-los espalhados, pelo chão e os lençois. Vermelhos, pretos, azuis. Cor de nada. Nem vê-los mais. Quando?


Desculpas se eu não voltar. Não suportei. Perdoa minha ida como perdoou minha chegada uma vez. Parti sóbrio, parti contente. Parti seguro daquilo que estava fazendo ainda que as lágrimas enchessem meus olhos e cruzassem minha face. Elas acabavam num sorriso. Chorava porque conheço a saudade e sei que um dia ela me encontrará. Mas não você. Você nunca mais. Vou ganhar o mundo sem as suas asas, andar pelas ruas descalço de seus cuidados desastrados. Vou pisar em asfalto quente, ganhar bolhas. Vou acabar mais magro e mais seco. Vou acabar com um fim só meu. E o escreverei por conta própria, com minha letra, com meu punho machucado, com meu sangue derramado. Não parti por um desejo sado de sofrer, mas por um desejo claro de viver, viver uma vida que não teria ao seu lado. Vida que não tive. Então, se respiro agora e me entrego a outros caminhos é porque sei que é o melhor que posso fazer, sei que é o melhor de mim. Se cuida. Eu vou me cuidar.

Se penso, já não quero. Quero é sentir. E sentir demais, já não quero. Quero mais é não querer. Poder. Poder sem querer. Querer não é poder. Quero mais é esquecer. Juntar as pontas dessa vida e galopar. Ah, como me canso. Descaso, acaso irrelevante. Quero uma brisa, uma garoa. Um chuva torrencial. De suco gástrico. Ácido.

Já não sentia os sentidos. Sentou-se e chorou. Ali, na soleira da porta, desolado e entregue a ondas soluçantes, afogado nas lágrimas que não cansariam de cair e molhar o chão e deixar marcas em sua camiseta e rasgá-lo por dentro, sangrá-lo das raivas engolidas. Alienou-se num céu turvo de olhos cerrados e vermelhos. Visão confusa, difusa, lacerante de um cenário seco, natural, mórbido e cotidiano. Viu-se mais uma vez ali, na casa que costumava amar, na vida que costumava ter, nos costumes que costumava vestir e chorou.

Chorou pois era tudo que tinha. Não tinha secado, mas tinha morrido. Morreu dia-a-dia, morreu em cada garfada. Deixou a vida esvair em cada passo em direção a porta. Morreu nos cigarros que apagou, nos copos que terminou, morreu em cada contrato fechado, em cada assinatura refeita. Chorava agora, ali na soleira da porta, o próprio enterro. Era o caixão, era o defunto e era a morte. Era o verme que putrificava sua própria carne. Não havia perfume que afastasse o odor. Estava morto e sabia.

Chorou anos seguidos. Da soleira da porta fez túmulo. Ao seu redor, das lágrimas brotava vida, vida de uma natureza sanguessuga, usurpadora das lágrimas do morto. O pé fez-se raiz. Enterrou-se, fundo. Casa, morto, alma, vazio. Fez-se corpo presente e pesado na entrada da casa que amou. Fez-se forte e ramagem da soleira da porta que já não abriria nunca mais. Prendeu-se forte a paredes que exibiam mais histórias do que aquela que fingiu viver. Prendeu-se ali, exilado da vida que renegou.


Desce do carro. Outra carona, outro desconhecido, outras horas em silêncio se contorcendo no banco em uma estrada inacabável. Sente o frio já previsto e se culpa por ter esquecido os casacos. Em cima da cama. Em outra cidade.

Junta as malas, agradece. Paga. Caminha em direção ao ponto. Ponto de ônibus. De chegada, de partida. Encosta na mureta e espera. Liga o telefone, disca. Cobra “Cadê você? Já estou aqui”. Em resposta “10 minutos”. Já se passaram vinte. Pensa de novo nas blusas que deixou em cima da cama. Pragueja. 30 minutos.

A nova carona chega. Entra no carro, cumprimenta, silencia. Está a 250km de lugar nenhum. Não entende pra onde volta ou pra onde vai. Se arrepende por chegar. “Estou bem”. Tudo certo? “Tudo”. Encurta o assunto, fecha o vidro. Busca o cigarro que não pode fumar. Pragueja, mentalmente.

Escuta as novidades. Processa o que escuta, soma ao que leu e se arrepende por vir. Não se interessa por aquilo. Deixa que as palavras se afundem no silêncio. Não se preocupa. As lágrimas esquentam os olhos. Não caem. Seriam só outras lágrimas. Já secaram.

A paisagem corre pelo vidro do carro. “Tá com fome? Se tiver precisamos pedir algo”. Só o velho descaso, desinteresse? Não sabe, diz que não tem fome, silencia de novo. “Tá bravo?”. Não. Arrependido, apegado. “Só cansado, não dormi direito”.

Chegam. Desce, abre, fecha. Liga a TV. A novela fora de horário preenche os vazios que conversa nenhuma tenta cobrir. Serve-se de um iogurte. Insosso. Deita e espera. Logo o final da semana finda finalmente. Logo chega onde não quer. Logo, pega outra carona.

É que não fomos mesmo feitos pra durar. A vida é mesmo um sopro e somos espirros de uma existência que é tão leve quanto folhas voando no vento. Acho que não nasci pra durar. Nas fotos vejo o tempo que deixei passar e vejo como vou morrendo nos anos... vejo o sorriso infantil ser contornado pelas barbas de um homem que não tem pretensões de ser por muito tempo. A pele da infância queimada pelos sóis que se esconderam num horizonte que não envelhece comigo. A arrogância é o que me injeta juventude, ou o contrário. Sinto nos ossos as vibrações do tempo que me leva, que me lava, que me entope com as dúvidas dos amanhãs que não enxergo, dos dias que não quero ver.

E sei que não vai durar...

Sentia saudades de um tempo em que cabia num colo. Tempo em que podia se ajeitar e dormir em paz. Preso numa casca maior, ainda sente-se como algo menor. Teme pelo que venha a ser. Se sente sozinho num mundo onde todo mundo é assim, sozinho também. Despreparado, de olhos fechados pra multidão, não quer olhar pro cinza que o rodeia. 


Embaixo do edredon, não quer sair. Acorda para outro dia, no espelho o rosto inchado pelo sono que não quer deixar. A vontade de não acordar. De já nem se mexer. Veste-se para o tempo que venta em frio inesperado. Na rua, o sol esquenta o corpo que teima em tremer, teima em ser frio. Não há sol naquele escuro. 

Deixa que o dia passe distribuindo sorrisos e grosserias, elogios e ironias. Casca arrastada num esforço de má vontade. Uma hora vai passar. 

Ele? Segue.


Descobrir que o problema é pensar. O problema é mergulhar em você e se encontrar, se ouvir. Escutar seus sussurros colados ao pé do seu ouvido. Você não pode se silenciar. Não pode levantar da cadeira e se deixar falando sozinho, pedir licença e ir buscar um café ou até mesmo se enfiar um soco na boca e deixar o sangue reprimir as palavras. Você não pode fazer nada disso. Você senta na plateia de um grande teatro e assiste a um monólogo. Minto. Você senta com você mesmo ou com vários de você. E escuta. Pensar é algo cruel. Ouvir-se é algo cruel.
Passo muito tempo correndo. Não correndo correndo, mas correndo. Esqueço-me do tempo. Esqueço-me de mim. Fujo de mim... Ouço meus gritos desesperados longe demais pra poder dar atenção. Fico ocupado, preocupado, irritado. E não preciso me ouvir. Mas sempre, em algum momento, quando se passam as ocupações e tudo que resta são preocupações e irritações, sou obrigado a me ouvir. Encontro-me. Aqueles encontros desconfortáveis, com pessoas que você não deseja ver, mas que acontecem.  São assim.
Então luto pra não me perder em mim. Pra não perder o controle se é que posso dizer que me controlo. Luto pra não cair de novo. Pra não voltar a tempestade de ideias que já deixei que me consumissem. Pra não reviver um passado que deixo se enfiar ainda em minhas veias. Que ainda me permito viver.
Dou-me esse direito de agir como um velho que reclama da vida que teve porque tenho medo da vida que terei. Não sou um velho e nem tenho tanto do que reclamar assim. Mas sei que me prendi a coisas que não consigo definir, coisas que se espelham no que sou e que eu não queria que fizessem parte de mim. Fico sentindo auto-piedade. Auto-piedade. Escrever sobre isso já não ajuda porque palavras me dão o direito de mascarar o que é. Desenhos me dão o direito de mascarar. Sorrir me dá esse direito e levantar de manhã pra sentir pena de novo me dá esse direito.
Não consigo me encarar. Não consigo saber o que sou. Não sei o que me faz feliz ou o que pode me fazer feliz. Bebo e me alucino porque assim posso não ser nada. Posso ser um bêbado. Eu sei ser isso. Mas o que sei sobre ser eu? O que sei sobre ter meus 20 anos? Reclamaria agora da minha arrogância, mas uso dela o tempo todo. Arma, escudo, tanto faz. Reclamaria do meu egoísmo, do meu egocentrismo, da minha insegurança e acabaria sempre no mesmo lugar. Perdi o rumo das minhas autoanálises e me permiti inventar tudo sobre mim, me permiti não ser. Errei.
Agora, deitado aqui sentindo meu estômago reclamar de uma doença que não posso confirmar que tenho, idealizando palavras que já não me surgem mais, me pergunto como vou acordar amanhã, que “eu” vai sair do chuveiro, que voz e que tom usarei no bom dia e não sei o que dizer. Sei que quero acordar. Mas não sei pra quê. E ao contrário do que diria, não é de agora. Mas é de sempre. Eu nunca resolvi nada.

Só tratei de esconder bem...

E ela era assim, a menina que ele tinha desenhado em folhas de caderno, pautadas em linhas ciano. Tinha as curvas  dos recortes topográficos dos morros baseados em peitos e bundas que ele cansou de riscar. Os cabelos voados escuros como o nanquim que teimava em manchar as folhas de baixo. Menina que ele gostava de florear nos sonhos de jardins proibidos, nos pesadelos de luxuriosos infernos. Exatamente a menina que surgia, sempre que ele podia se divertir sozinho, com obscenidades de segredo, segredos desnecessários. 


Era a menina virtual, que ouviria Billie Holliday com ele achando sexy e não parada. Que o mostraria um mundo art-nouveau, um mundo barroco, de curvas e luzes dramáticas, de cenas inesperadas com pontos de vista forçados. Trancados em casa as paredes seriam góticas e a vontade de tocar o céu seria exasperada nos gritos que seriam arrancados pelo sexo que ambos repitiriam num ritmo inegável. 

E era ela ali, tocável, palpável, como uma viga clássica fincada no alto da encosta, que se arrastaria por milhares de anos. Cena eterna de filme mudo que queima na carne a imagem que um dia você talvez queira esquecer. Ela com os cabelos pretos, o corpo geográfico e o sorriso lunático de madrugadas viradas a imaginar. Imaginar. 

Vai, e conversa com ela.

A brasa acesa no escuro recortado pelo quadrado da janela. Era um samba todo, queimando em fumaça branca contrastada no vermelho, forte, poderoso, que radiava de seus cabelos, de sua boca, daquele falso ódio delirando num sorriso irônico. Acordes, notas. Sopro de palavras mudas, silenciadas numa ignorância mútua. Era uma ópera toda, tocada com ênfase, cansada até o último momento, dedilhada num enlace de amores alcoolizados, paixões gravadas em ventanias ao pé de escadarias.

Aquele recorte na janela, beleza fotografada em um olhar sonolento, soprada com a fumaça de outro cigarro, com o fundo de outro copo. Era o relógio grudado torto na parede. Aquele descompasso de minutos e segundos e anos que não voltavam e nem correriam a vontade de quem os vivencia.

Não desenhou. Das linhas que viu só pode ficar com as cores e nem tocou, porque já era tarde, já era madrugada, já era silêncio. Nem tocou, porque do violão só tirava o mi. Nem dó saia dali.

Desce da janela. Calça os sapatos. Abre a porta que já abriu antes. Cruza a cozinha que já cruzou antes. Pisa nas folhas secas da árvore que caduca com o inverno que se aproxima irremediável em um futuro onde essa cena já não vai se repetir. Ele deixa ela ir. Deixa porque precisa, mas sem ter a certeza de que quer. E ela vai, decidida.

Pisa na calçada e fraqueja. Ele sobe as escadas e espera.

Não voltam mais. A janela é fechada e a cena tenta se desfazer, assim como as folhas serão varridas e como a árvore em breve será só galhos. Não que eles não se desejem e não que o cigarro apagado tenha sido o último do maço, mas já é tempo de enfrentarem a si mesmos sozinhos.

Vão lá, ouvir suas músicas... ninguém pode sair de mero espectador agora.


O cheiro da pólvora não foi capaz de apagar aquele sorriso. O denso odor da carne queimada pelo tiro a queima roupa não foi sólido o bastante pra desfazer o sorriso que brotou do lábio carmim. O sangue escarlate, que estragava o papel de parede, estragava o carpete e deixava marcas em seus sapatos parecia conversar com a cor daqueles lábios que sorriam a meia-luz. No quarto, agora inundado pelo sangue que a morte recolhia em frascos decorados, ela sentou-se na cama, escorregando nos lençóis de cetim que ainda recendiam ao amor das loucas noites de verão. Olhou para o corpo no chão, estirado. Deixou que uma lágrima brotasse de seu olho esquerdo e tocasse a carne dos lábios que não eram os únicos a beijar a boca do morto. Deixou que a gota pingasse nas coxas que já não podiam mais segurar seus ventres apertados, enquanto sem fôlego ela urrava os berros do bicho traído, da mulher trocada, da esposa atenciosa, da amante dispensada. E deixou que sua boca, que era lábios e dentes e fogo e amor tornasse ao sorriso limitado pelo vermelho, que era sangue e batom e amor e fogo. Sorriu vingada. Prendeu a arma de volta a coxa, levantou-se, arrumou os seios no sutiã de renda, olhou-se no espelho, limpou a lágrima.

“Viúvo é quem morre” foi o que pensou ao fechar a porta do quarto e ganhar as ruas sorrindo para a lua que recitava poesias em seu ouvido.

Tão triste e sozinho, deitado fundo no sofá, fugindo dos fantasmas da cama. Se sentia solitário de um jeito novo, solitário de um jeito que só o último de uma espécie saberia como é. Era o único de si. E não conseguia nem se suportar. Queria alguém pra dizer que ama, mas não encontrava no meio do ego que espalhou pela casa. Tornara-se um bicho indomável, ouriçado, cruel consigo mesmo, apaixonado pela sua auto-piedade, esgotado nas batalhas contra os demônios invencíveis. Não conseguia ver verdade em "tudo está cheio de amor". Estava jogando xadrez e não podia vencer pois já não tinha rivais. Via o sol nascer mais uma vez, na insônia de esperar por algo que não queria que chegasse. Precisava crescer. Se livrar... mas que medo que tinha disso. Não queria levantar-se de novo, não queria repetir e repetir e trocar palavras e continuar falando das mesmas coisas.

Pensava na vida que ainda tinha em frente e já se arrependia por ter nascido. Pensava no dia que ia raiar e se arrependia por não ter dormido, pensava na noite que viria depois e se arrependia por ter visto mais um sol se por.


Andava na rua de novo. Com seu tênis branco e encardido, com sua bermuda suja, camiseta arrumada, cabelo desgrenhado, barba por fazer. Mochila vazia presa nas costas. Andava apressado, com os passos de quem quer sair correndo e não quer parar mais, passos de quem se imaginava Forrest.


Passos rápidos, agéis. Desviava das árvores, embaixo dos pingos de chuva. Pulava as poças, atolava o pé no barro. Imaginava situações que o livrassem daquela vida cavocada na penumbra. Prestava atenção nos postes que apagavam e contava o tempo até que se iluminassem. Esperava que o sequestrassem, esperava ser roubado, esperava que lhe oferecessem sexo. Acelerava o passo.

Sabia que andava mais rápido que o necessário. Sabia que adiantava o momento de chegar em qualquer lugar, ainda que nunca quisesse chegar em lugar nenhum. Não corria, não gostava de correr, mas acelerava o passo, acelerava cada movimento muscular que o levasse um metro mais a frente, um metro além de qualquer demônio. Fugia.

Sentia-se livre ali na rua. Sentia-se dono de uma vida que não podia perseguir, por mais que ainda caminhasse. Essa vida que deteriorava em seus sonhos, vida que via pior, que imaginava diferente, que criava irresponsavelmente.

Olhava para os carros e se via atropelado, tripas coladas no asfalto. Fêmur fraturado, crânio despedaçado. Voltava-se para a calçada. Não queria aquilo e ria de si mesmo. Prestava atenção em seus cadarços e desviava das riscas do chão invocando antigos mitos. Revia mentalmente sua agenda, amaldiçoava mais uma vez, amigos, família, seus cachorros.

Respirava e lançava-se em outro passo no escuro. Só sabia seguir.

Olha amor. Mira esses meus olhos. Enxerga nessas rugas meu cansaço. Olha bem amor, por favor, olha agora. Enxerga em mim de novo seu novo amante, enxerga nesse velho corpo seu antigo amor. Esquece as marcas do tempo e do desprezo, esquece as cicatrizes dessa vida arrastada e me ama de novo. Olha pra mim amor.


Junta coragem e levanta esse rosto, abre esse seu olho e me vê mais uma vez. Parado, na sua frente, implorando. Para de só me ouvir falar. Amor, preciso disso. Me olha. Olha nos meus olhos e me aceita mais uma vez... não mata-me devagar assim, não me ignora como ignora os cachorros famintos que te seguem cheirosa. Não suporto.

Não te peço perdão pois não errei. Não derramo lágrimas pois não tenho tristeza enterrada no peito. Não tenho medo porque já não tenho mais nada a perder. Então me olha amor, me olha e sai dessa pose desposada e travada e desinteressada. Olha e tenta me aquecer.

Sou um velho. E você é uma velha. E nossas vidas são velhas. E nosso amor... doente, decadente. Meu amor. Mas ainda somos nós. Amor. Pode ficar com seus sentimentos acabados na vala suja, pode ficar com suas ideias que me deitaram na lama. Mas agora, só agora, agora que sopro a angústia de uma vida bem vivida, olha pra mim, olha pra mim. E se despede...

Já não sei se acordarei.

Outro cigarro. Filtro vermelho. Desses que machuca a garganta e pesa nos pulmões. Pesa nas veias. Faz sua pressão cair, te afunda no sofá, bagunça seus pensamentos. Te faz dormir. Bate as cinzas no metal que se aquece, olha a brasa. Outro trago.

Conferindo a música na vitrola lembra-se dos números que deixou de discar. É, não discou mesmo. Não quis. Nunca gostou de telefones... lembra dos números que quis ganhar, dos que precisava ganhar, dos que tinha e daqueles que coloriam folhas e mais folhas. Números.

Pensava no que fazia e faria por eles. No que não contou. Sofria em silêncio naqueles tragos, tentando deixar a música tocar mais alto. Preso nessas redes perigosas de fios de nilon que cortavam mas não prendiam, debatia-se de infelicidade, não podia se sentir completo. Díficil se sentir completo em tempos tão duros. Díficil sentir. Amortecia-se.

Amortecido parava a vitrola. Encostava-se no travesseiro, enxugando lágrimas que poderiam ser de tristeza, mas desciam com o sono de quem tenta não se preocupar. Mas preocupava-se. Ali no travesseiro voltava a fita, guardava as dores que podia enquanto socava o objeto que deveria se adaptar a uma cabeça que só queria no mundo poder explodir. Em penas, em miolos, em ideias. Em números.

Vê-los espalhados, pelo chão e os lençois. Vermelhos, pretos, azuis. Cor de nada. Nem vê-los mais. Quando?


Desculpas se eu não voltar. Não suportei. Perdoa minha ida como perdoou minha chegada uma vez. Parti sóbrio, parti contente. Parti seguro daquilo que estava fazendo ainda que as lágrimas enchessem meus olhos e cruzassem minha face. Elas acabavam num sorriso. Chorava porque conheço a saudade e sei que um dia ela me encontrará. Mas não você. Você nunca mais. Vou ganhar o mundo sem as suas asas, andar pelas ruas descalço de seus cuidados desastrados. Vou pisar em asfalto quente, ganhar bolhas. Vou acabar mais magro e mais seco. Vou acabar com um fim só meu. E o escreverei por conta própria, com minha letra, com meu punho machucado, com meu sangue derramado. Não parti por um desejo sado de sofrer, mas por um desejo claro de viver, viver uma vida que não teria ao seu lado. Vida que não tive. Então, se respiro agora e me entrego a outros caminhos é porque sei que é o melhor que posso fazer, sei que é o melhor de mim. Se cuida. Eu vou me cuidar.
Se penso, já não quero. Quero é sentir. E sentir demais, já não quero. Quero mais é não querer. Poder. Poder sem querer. Querer não é poder. Quero mais é esquecer. Juntar as pontas dessa vida e galopar. Ah, como me canso. Descaso, acaso irrelevante. Quero uma brisa, uma garoa. Um chuva torrencial. De suco gástrico. Ácido.

Do pó ao pó

Já não sentia os sentidos. Sentou-se e chorou. Ali, na soleira da porta, desolado e entregue a ondas soluçantes, afogado nas lágrimas que não cansariam de cair e molhar o chão e deixar marcas em sua camiseta e rasgá-lo por dentro, sangrá-lo das raivas engolidas. Alienou-se num céu turvo de olhos cerrados e vermelhos. Visão confusa, difusa, lacerante de um cenário seco, natural, mórbido e cotidiano. Viu-se mais uma vez ali, na casa que costumava amar, na vida que costumava ter, nos costumes que costumava vestir e chorou.

Chorou pois era tudo que tinha. Não tinha secado, mas tinha morrido. Morreu dia-a-dia, morreu em cada garfada. Deixou a vida esvair em cada passo em direção a porta. Morreu nos cigarros que apagou, nos copos que terminou, morreu em cada contrato fechado, em cada assinatura refeita. Chorava agora, ali na soleira da porta, o próprio enterro. Era o caixão, era o defunto e era a morte. Era o verme que putrificava sua própria carne. Não havia perfume que afastasse o odor. Estava morto e sabia.

Chorou anos seguidos. Da soleira da porta fez túmulo. Ao seu redor, das lágrimas brotava vida, vida de uma natureza sanguessuga, usurpadora das lágrimas do morto. O pé fez-se raiz. Enterrou-se, fundo. Casa, morto, alma, vazio. Fez-se corpo presente e pesado na entrada da casa que amou. Fez-se forte e ramagem da soleira da porta que já não abriria nunca mais. Prendeu-se forte a paredes que exibiam mais histórias do que aquela que fingiu viver. Prendeu-se ali, exilado da vida que renegou.


Parada

Desce do carro. Outra carona, outro desconhecido, outras horas em silêncio se contorcendo no banco em uma estrada inacabável. Sente o frio já previsto e se culpa por ter esquecido os casacos. Em cima da cama. Em outra cidade.

Junta as malas, agradece. Paga. Caminha em direção ao ponto. Ponto de ônibus. De chegada, de partida. Encosta na mureta e espera. Liga o telefone, disca. Cobra “Cadê você? Já estou aqui”. Em resposta “10 minutos”. Já se passaram vinte. Pensa de novo nas blusas que deixou em cima da cama. Pragueja. 30 minutos.

A nova carona chega. Entra no carro, cumprimenta, silencia. Está a 250km de lugar nenhum. Não entende pra onde volta ou pra onde vai. Se arrepende por chegar. “Estou bem”. Tudo certo? “Tudo”. Encurta o assunto, fecha o vidro. Busca o cigarro que não pode fumar. Pragueja, mentalmente.

Escuta as novidades. Processa o que escuta, soma ao que leu e se arrepende por vir. Não se interessa por aquilo. Deixa que as palavras se afundem no silêncio. Não se preocupa. As lágrimas esquentam os olhos. Não caem. Seriam só outras lágrimas. Já secaram.

A paisagem corre pelo vidro do carro. “Tá com fome? Se tiver precisamos pedir algo”. Só o velho descaso, desinteresse? Não sabe, diz que não tem fome, silencia de novo. “Tá bravo?”. Não. Arrependido, apegado. “Só cansado, não dormi direito”.

Chegam. Desce, abre, fecha. Liga a TV. A novela fora de horário preenche os vazios que conversa nenhuma tenta cobrir. Serve-se de um iogurte. Insosso. Deita e espera. Logo o final da semana finda finalmente. Logo chega onde não quer. Logo, pega outra carona.
É que não fomos mesmo feitos pra durar. A vida é mesmo um sopro e somos espirros de uma existência que é tão leve quanto folhas voando no vento. Acho que não nasci pra durar. Nas fotos vejo o tempo que deixei passar e vejo como vou morrendo nos anos... vejo o sorriso infantil ser contornado pelas barbas de um homem que não tem pretensões de ser por muito tempo. A pele da infância queimada pelos sóis que se esconderam num horizonte que não envelhece comigo. A arrogância é o que me injeta juventude, ou o contrário. Sinto nos ossos as vibrações do tempo que me leva, que me lava, que me entope com as dúvidas dos amanhãs que não enxergo, dos dias que não quero ver.

E sei que não vai durar...
Sentia saudades de um tempo em que cabia num colo. Tempo em que podia se ajeitar e dormir em paz. Preso numa casca maior, ainda sente-se como algo menor. Teme pelo que venha a ser. Se sente sozinho num mundo onde todo mundo é assim, sozinho também. Despreparado, de olhos fechados pra multidão, não quer olhar pro cinza que o rodeia. 

Embaixo do edredon, não quer sair. Acorda para outro dia, no espelho o rosto inchado pelo sono que não quer deixar. A vontade de não acordar. De já nem se mexer. Veste-se para o tempo que venta em frio inesperado. Na rua, o sol esquenta o corpo que teima em tremer, teima em ser frio. Não há sol naquele escuro. 

Deixa que o dia passe distribuindo sorrisos e grosserias, elogios e ironias. Casca arrastada num esforço de má vontade. Uma hora vai passar. 

Ele? Segue.

Por ainda ter tempo


Descobrir que o problema é pensar. O problema é mergulhar em você e se encontrar, se ouvir. Escutar seus sussurros colados ao pé do seu ouvido. Você não pode se silenciar. Não pode levantar da cadeira e se deixar falando sozinho, pedir licença e ir buscar um café ou até mesmo se enfiar um soco na boca e deixar o sangue reprimir as palavras. Você não pode fazer nada disso. Você senta na plateia de um grande teatro e assiste a um monólogo. Minto. Você senta com você mesmo ou com vários de você. E escuta. Pensar é algo cruel. Ouvir-se é algo cruel.
Passo muito tempo correndo. Não correndo correndo, mas correndo. Esqueço-me do tempo. Esqueço-me de mim. Fujo de mim... Ouço meus gritos desesperados longe demais pra poder dar atenção. Fico ocupado, preocupado, irritado. E não preciso me ouvir. Mas sempre, em algum momento, quando se passam as ocupações e tudo que resta são preocupações e irritações, sou obrigado a me ouvir. Encontro-me. Aqueles encontros desconfortáveis, com pessoas que você não deseja ver, mas que acontecem.  São assim.
Então luto pra não me perder em mim. Pra não perder o controle se é que posso dizer que me controlo. Luto pra não cair de novo. Pra não voltar a tempestade de ideias que já deixei que me consumissem. Pra não reviver um passado que deixo se enfiar ainda em minhas veias. Que ainda me permito viver.
Dou-me esse direito de agir como um velho que reclama da vida que teve porque tenho medo da vida que terei. Não sou um velho e nem tenho tanto do que reclamar assim. Mas sei que me prendi a coisas que não consigo definir, coisas que se espelham no que sou e que eu não queria que fizessem parte de mim. Fico sentindo auto-piedade. Auto-piedade. Escrever sobre isso já não ajuda porque palavras me dão o direito de mascarar o que é. Desenhos me dão o direito de mascarar. Sorrir me dá esse direito e levantar de manhã pra sentir pena de novo me dá esse direito.
Não consigo me encarar. Não consigo saber o que sou. Não sei o que me faz feliz ou o que pode me fazer feliz. Bebo e me alucino porque assim posso não ser nada. Posso ser um bêbado. Eu sei ser isso. Mas o que sei sobre ser eu? O que sei sobre ter meus 20 anos? Reclamaria agora da minha arrogância, mas uso dela o tempo todo. Arma, escudo, tanto faz. Reclamaria do meu egoísmo, do meu egocentrismo, da minha insegurança e acabaria sempre no mesmo lugar. Perdi o rumo das minhas autoanálises e me permiti inventar tudo sobre mim, me permiti não ser. Errei.
Agora, deitado aqui sentindo meu estômago reclamar de uma doença que não posso confirmar que tenho, idealizando palavras que já não me surgem mais, me pergunto como vou acordar amanhã, que “eu” vai sair do chuveiro, que voz e que tom usarei no bom dia e não sei o que dizer. Sei que quero acordar. Mas não sei pra quê. E ao contrário do que diria, não é de agora. Mas é de sempre. Eu nunca resolvi nada.

Só tratei de esconder bem...
E ela era assim, a menina que ele tinha desenhado em folhas de caderno, pautadas em linhas ciano. Tinha as curvas  dos recortes topográficos dos morros baseados em peitos e bundas que ele cansou de riscar. Os cabelos voados escuros como o nanquim que teimava em manchar as folhas de baixo. Menina que ele gostava de florear nos sonhos de jardins proibidos, nos pesadelos de luxuriosos infernos. Exatamente a menina que surgia, sempre que ele podia se divertir sozinho, com obscenidades de segredo, segredos desnecessários. 

Era a menina virtual, que ouviria Billie Holliday com ele achando sexy e não parada. Que o mostraria um mundo art-nouveau, um mundo barroco, de curvas e luzes dramáticas, de cenas inesperadas com pontos de vista forçados. Trancados em casa as paredes seriam góticas e a vontade de tocar o céu seria exasperada nos gritos que seriam arrancados pelo sexo que ambos repitiriam num ritmo inegável. 

E era ela ali, tocável, palpável, como uma viga clássica fincada no alto da encosta, que se arrastaria por milhares de anos. Cena eterna de filme mudo que queima na carne a imagem que um dia você talvez queira esquecer. Ela com os cabelos pretos, o corpo geográfico e o sorriso lunático de madrugadas viradas a imaginar. Imaginar. 

Vai, e conversa com ela.

Dos cigarros no cinzeiro

A brasa acesa no escuro recortado pelo quadrado da janela. Era um samba todo, queimando em fumaça branca contrastada no vermelho, forte, poderoso, que radiava de seus cabelos, de sua boca, daquele falso ódio delirando num sorriso irônico. Acordes, notas. Sopro de palavras mudas, silenciadas numa ignorância mútua. Era uma ópera toda, tocada com ênfase, cansada até o último momento, dedilhada num enlace de amores alcoolizados, paixões gravadas em ventanias ao pé de escadarias.

Aquele recorte na janela, beleza fotografada em um olhar sonolento, soprada com a fumaça de outro cigarro, com o fundo de outro copo. Era o relógio grudado torto na parede. Aquele descompasso de minutos e segundos e anos que não voltavam e nem correriam a vontade de quem os vivencia.

Não desenhou. Das linhas que viu só pode ficar com as cores e nem tocou, porque já era tarde, já era madrugada, já era silêncio. Nem tocou, porque do violão só tirava o mi. Nem dó saia dali.

Desce da janela. Calça os sapatos. Abre a porta que já abriu antes. Cruza a cozinha que já cruzou antes. Pisa nas folhas secas da árvore que caduca com o inverno que se aproxima irremediável em um futuro onde essa cena já não vai se repetir. Ele deixa ela ir. Deixa porque precisa, mas sem ter a certeza de que quer. E ela vai, decidida.

Pisa na calçada e fraqueja. Ele sobe as escadas e espera.

Não voltam mais. A janela é fechada e a cena tenta se desfazer, assim como as folhas serão varridas e como a árvore em breve será só galhos. Não que eles não se desejem e não que o cigarro apagado tenha sido o último do maço, mas já é tempo de enfrentarem a si mesmos sozinhos.

Vão lá, ouvir suas músicas... ninguém pode sair de mero espectador agora.

Vermelho


O cheiro da pólvora não foi capaz de apagar aquele sorriso. O denso odor da carne queimada pelo tiro a queima roupa não foi sólido o bastante pra desfazer o sorriso que brotou do lábio carmim. O sangue escarlate, que estragava o papel de parede, estragava o carpete e deixava marcas em seus sapatos parecia conversar com a cor daqueles lábios que sorriam a meia-luz. No quarto, agora inundado pelo sangue que a morte recolhia em frascos decorados, ela sentou-se na cama, escorregando nos lençóis de cetim que ainda recendiam ao amor das loucas noites de verão. Olhou para o corpo no chão, estirado. Deixou que uma lágrima brotasse de seu olho esquerdo e tocasse a carne dos lábios que não eram os únicos a beijar a boca do morto. Deixou que a gota pingasse nas coxas que já não podiam mais segurar seus ventres apertados, enquanto sem fôlego ela urrava os berros do bicho traído, da mulher trocada, da esposa atenciosa, da amante dispensada. E deixou que sua boca, que era lábios e dentes e fogo e amor tornasse ao sorriso limitado pelo vermelho, que era sangue e batom e amor e fogo. Sorriu vingada. Prendeu a arma de volta a coxa, levantou-se, arrumou os seios no sutiã de renda, olhou-se no espelho, limpou a lágrima.

“Viúvo é quem morre” foi o que pensou ao fechar a porta do quarto e ganhar as ruas sorrindo para a lua que recitava poesias em seu ouvido.
Tão triste e sozinho, deitado fundo no sofá, fugindo dos fantasmas da cama. Se sentia solitário de um jeito novo, solitário de um jeito que só o último de uma espécie saberia como é. Era o único de si. E não conseguia nem se suportar. Queria alguém pra dizer que ama, mas não encontrava no meio do ego que espalhou pela casa. Tornara-se um bicho indomável, ouriçado, cruel consigo mesmo, apaixonado pela sua auto-piedade, esgotado nas batalhas contra os demônios invencíveis. Não conseguia ver verdade em "tudo está cheio de amor". Estava jogando xadrez e não podia vencer pois já não tinha rivais. Via o sol nascer mais uma vez, na insônia de esperar por algo que não queria que chegasse. Precisava crescer. Se livrar... mas que medo que tinha disso. Não queria levantar-se de novo, não queria repetir e repetir e trocar palavras e continuar falando das mesmas coisas.

Pensava na vida que ainda tinha em frente e já se arrependia por ter nascido. Pensava no dia que ia raiar e se arrependia por não ter dormido, pensava na noite que viria depois e se arrependia por ter visto mais um sol se por.


Sobre você

Andava na rua de novo. Com seu tênis branco e encardido, com sua bermuda suja, camiseta arrumada, cabelo desgrenhado, barba por fazer. Mochila vazia presa nas costas. Andava apressado, com os passos de quem quer sair correndo e não quer parar mais, passos de quem se imaginava Forrest.

Passos rápidos, agéis. Desviava das árvores, embaixo dos pingos de chuva. Pulava as poças, atolava o pé no barro. Imaginava situações que o livrassem daquela vida cavocada na penumbra. Prestava atenção nos postes que apagavam e contava o tempo até que se iluminassem. Esperava que o sequestrassem, esperava ser roubado, esperava que lhe oferecessem sexo. Acelerava o passo.

Sabia que andava mais rápido que o necessário. Sabia que adiantava o momento de chegar em qualquer lugar, ainda que nunca quisesse chegar em lugar nenhum. Não corria, não gostava de correr, mas acelerava o passo, acelerava cada movimento muscular que o levasse um metro mais a frente, um metro além de qualquer demônio. Fugia.

Sentia-se livre ali na rua. Sentia-se dono de uma vida que não podia perseguir, por mais que ainda caminhasse. Essa vida que deteriorava em seus sonhos, vida que via pior, que imaginava diferente, que criava irresponsavelmente.

Olhava para os carros e se via atropelado, tripas coladas no asfalto. Fêmur fraturado, crânio despedaçado. Voltava-se para a calçada. Não queria aquilo e ria de si mesmo. Prestava atenção em seus cadarços e desviava das riscas do chão invocando antigos mitos. Revia mentalmente sua agenda, amaldiçoava mais uma vez, amigos, família, seus cachorros.

Respirava e lançava-se em outro passo no escuro. Só sabia seguir.

Pra poder ir em paz

Olha amor. Mira esses meus olhos. Enxerga nessas rugas meu cansaço. Olha bem amor, por favor, olha agora. Enxerga em mim de novo seu novo amante, enxerga nesse velho corpo seu antigo amor. Esquece as marcas do tempo e do desprezo, esquece as cicatrizes dessa vida arrastada e me ama de novo. Olha pra mim amor.

Junta coragem e levanta esse rosto, abre esse seu olho e me vê mais uma vez. Parado, na sua frente, implorando. Para de só me ouvir falar. Amor, preciso disso. Me olha. Olha nos meus olhos e me aceita mais uma vez... não mata-me devagar assim, não me ignora como ignora os cachorros famintos que te seguem cheirosa. Não suporto.

Não te peço perdão pois não errei. Não derramo lágrimas pois não tenho tristeza enterrada no peito. Não tenho medo porque já não tenho mais nada a perder. Então me olha amor, me olha e sai dessa pose desposada e travada e desinteressada. Olha e tenta me aquecer.

Sou um velho. E você é uma velha. E nossas vidas são velhas. E nosso amor... doente, decadente. Meu amor. Mas ainda somos nós. Amor. Pode ficar com seus sentimentos acabados na vala suja, pode ficar com suas ideias que me deitaram na lama. Mas agora, só agora, agora que sopro a angústia de uma vida bem vivida, olha pra mim, olha pra mim. E se despede...

Já não sei se acordarei.

Ótica mental cheia de hortelã!

Café forte e sem açúcar!

Chá mental...