Mentaótico

Ótica mental cheia de hortelã!

Com as passagens em mãos, tendo finalmente dia e hora pra deixar a vida mudar, ele percebeu que já não precisava correr, não precisava fugir nem de quem era e nem de tudo aquilo que um dia quis ser. Agora com a data próxima e o destino tão distante ele pode respirar, não aliviado, mas minimamente realizado. Podia encarar a decisão sobriamente e podia deixar cada gota de terror pulsar em suas veias, amargar seu hálito e atear fogo em suas entranhas. Ele até gostava da sensação. O terror surgia do desconhecido que sempre foi seu futuro, esse estranho amigo, tão sombrio, caótico, incontrolável. Sonho ou piada, podia tremer nervoso com a alegria de mesmo que por pouco tempo ser o dono de cada passo, o senhor de cada sorriso. E não sorriu com aquelas passagens e nem falaria sobre elas gargalhando. Cada vez que lembrasse delas o coração gelaria e ele iria querer ficar, iria querer ter feito as coisas diferentes, iria querer ser outro. Mas já não seria. Pela primeira vez em muito tempo, sabia que estava exatamente onde deveria estar. E cada lágrima que agora corria refletia uma única verdade. Cada lágrima era um eco daquela voz que lá no fundo, mesmo nos momentos mais sombrios e nas dúvidas mais incertas era a certeza que o mantinha em pé, que o tirava da cama e que estampava o sorriso amarelo e tímido no seu rosto. A vida é boa. A gente que não vê.

Naquela tarde, sem sol, sem vento, de pouca luz e de pouca vida, meu coração cabia num copo de café e sereno em sua tormenta, era samba tocando no peito sem ar, enquanto num esforço canibal eu o bebia quente e amargo na tentativa sincera de aprisionar as lágrimas, de trancar em mim aquele pedacinho que negro queria escapar.

Naquela tarde meu coração, coado na calcinha dos amores que deixava pra trás se debatia histérico olhando para o mundo que de repente era grande e incerto demais, que de repente era solitário demais. Tremi assustado vendo o sol se por e me envenenei nos devaneios do futuro que não chega. Observei o cão, que em sua completa ignorância ainda me tirava sorrisos e gargalhadas e que tinha o coração do tamanho do mundo. Perto dele, meu coração era um inseto. E assim, como uma barata sob o chinelo, hoje o mundo era pesado demais pra minha casca dura.

Naquela tarde agora já noite, ali, agora olhando o escuro e contando estrelas, chorei. Não foi dor ou remorso ou arrependimento que me tomaram, mas o velho adeus desarrumando a delicada ordem de tudo ao meu redor. Foi a despedida que branca fundiu-se as paredes, tirando as marcas e deixando o odor acrílico nada parecido com as fumaças que sediaram tantas risadas. Não despedia-me de minha família, mas despedia-me do menino que com tanto medo vi crescer, despedia-me da casa que mesmo sem teto fiz de lar, despedia-me das relações que mesmo descabidas do meu jeito descuidado eu quis cuidar.

Chorei porque sabia que dali em diante era mais dono de mim do que nunca havia sido, porque sabia que trilhava o caminho das decisões que fiz e chorei também porque sabia que escolhia o melhor de mim, escolhia o melhor pra mim. Chorei e vi meu coração pequeno transbordar e explodir e se espalhar por todos os cantos do meu ser vazio. Chorei porque deixei-me encher das esperanças, dos sonhos que tentei queimar, chorei porque em mim não havia mais espaço para as dores anteriores e em cada lágrima quente que riscava meu rosto, brilhando silenciosa sob a luz do céu e sob o olhar atento do cão, escorria junto os retalhos de todos os eus, de todos meus fantasmas que naquela tarde despediam-se agressivos enquanto os móveis eram retirados e as malas eram feitas.

Sequei as lágrimas, me levantei. O samba continuava em meu peito mas agora refletia-se feliz em meus lábios e ecoava forte em minha garganta. Liguei a cafeteira e em poucos minutos o cheiro do café tomou cada canto da casa, sobrepondo-se à tinta ainda fresca. Aliviado, enchi meu copo do líquido preto, bebi das boas coisas que pude viver ali e disse sim à vida que me levava de novo.

Voar

Com as passagens em mãos, tendo finalmente dia e hora pra deixar a vida mudar, ele percebeu que já não precisava correr, não precisava fugir nem de quem era e nem de tudo aquilo que um dia quis ser. Agora com a data próxima e o destino tão distante ele pode respirar, não aliviado, mas minimamente realizado. Podia encarar a decisão sobriamente e podia deixar cada gota de terror pulsar em suas veias, amargar seu hálito e atear fogo em suas entranhas. Ele até gostava da sensação. O terror surgia do desconhecido que sempre foi seu futuro, esse estranho amigo, tão sombrio, caótico, incontrolável. Sonho ou piada, podia tremer nervoso com a alegria de mesmo que por pouco tempo ser o dono de cada passo, o senhor de cada sorriso. E não sorriu com aquelas passagens e nem falaria sobre elas gargalhando. Cada vez que lembrasse delas o coração gelaria e ele iria querer ficar, iria querer ter feito as coisas diferentes, iria querer ser outro. Mas já não seria. Pela primeira vez em muito tempo, sabia que estava exatamente onde deveria estar. E cada lágrima que agora corria refletia uma única verdade. Cada lágrima era um eco daquela voz que lá no fundo, mesmo nos momentos mais sombrios e nas dúvidas mais incertas era a certeza que o mantinha em pé, que o tirava da cama e que estampava o sorriso amarelo e tímido no seu rosto. A vida é boa. A gente que não vê.

Sobre esvaziar, encher, deixar e levar

Naquela tarde, sem sol, sem vento, de pouca luz e de pouca vida, meu coração cabia num copo de café e sereno em sua tormenta, era samba tocando no peito sem ar, enquanto num esforço canibal eu o bebia quente e amargo na tentativa sincera de aprisionar as lágrimas, de trancar em mim aquele pedacinho que negro queria escapar.

Naquela tarde meu coração, coado na calcinha dos amores que deixava pra trás se debatia histérico olhando para o mundo que de repente era grande e incerto demais, que de repente era solitário demais. Tremi assustado vendo o sol se por e me envenenei nos devaneios do futuro que não chega. Observei o cão, que em sua completa ignorância ainda me tirava sorrisos e gargalhadas e que tinha o coração do tamanho do mundo. Perto dele, meu coração era um inseto. E assim, como uma barata sob o chinelo, hoje o mundo era pesado demais pra minha casca dura.

Naquela tarde agora já noite, ali, agora olhando o escuro e contando estrelas, chorei. Não foi dor ou remorso ou arrependimento que me tomaram, mas o velho adeus desarrumando a delicada ordem de tudo ao meu redor. Foi a despedida que branca fundiu-se as paredes, tirando as marcas e deixando o odor acrílico nada parecido com as fumaças que sediaram tantas risadas. Não despedia-me de minha família, mas despedia-me do menino que com tanto medo vi crescer, despedia-me da casa que mesmo sem teto fiz de lar, despedia-me das relações que mesmo descabidas do meu jeito descuidado eu quis cuidar.

Chorei porque sabia que dali em diante era mais dono de mim do que nunca havia sido, porque sabia que trilhava o caminho das decisões que fiz e chorei também porque sabia que escolhia o melhor de mim, escolhia o melhor pra mim. Chorei e vi meu coração pequeno transbordar e explodir e se espalhar por todos os cantos do meu ser vazio. Chorei porque deixei-me encher das esperanças, dos sonhos que tentei queimar, chorei porque em mim não havia mais espaço para as dores anteriores e em cada lágrima quente que riscava meu rosto, brilhando silenciosa sob a luz do céu e sob o olhar atento do cão, escorria junto os retalhos de todos os eus, de todos meus fantasmas que naquela tarde despediam-se agressivos enquanto os móveis eram retirados e as malas eram feitas.

Sequei as lágrimas, me levantei. O samba continuava em meu peito mas agora refletia-se feliz em meus lábios e ecoava forte em minha garganta. Liguei a cafeteira e em poucos minutos o cheiro do café tomou cada canto da casa, sobrepondo-se à tinta ainda fresca. Aliviado, enchi meu copo do líquido preto, bebi das boas coisas que pude viver ali e disse sim à vida que me levava de novo.

Ótica mental cheia de hortelã!

Café forte e sem açúcar!