Mentaótico

Ótica mental cheia de hortelã!

Já não sentia os sentidos. Sentou-se e chorou. Ali, na soleira da porta, desolado e entregue a ondas soluçantes, afogado nas lágrimas que não cansariam de cair e molhar o chão e deixar marcas em sua camiseta e rasgá-lo por dentro, sangrá-lo das raivas engolidas. Alienou-se num céu turvo de olhos cerrados e vermelhos. Visão confusa, difusa, lacerante de um cenário seco, natural, mórbido e cotidiano. Viu-se mais uma vez ali, na casa que costumava amar, na vida que costumava ter, nos costumes que costumava vestir e chorou.

Chorou pois era tudo que tinha. Não tinha secado, mas tinha morrido. Morreu dia-a-dia, morreu em cada garfada. Deixou a vida esvair em cada passo em direção a porta. Morreu nos cigarros que apagou, nos copos que terminou, morreu em cada contrato fechado, em cada assinatura refeita. Chorava agora, ali na soleira da porta, o próprio enterro. Era o caixão, era o defunto e era a morte. Era o verme que putrificava sua própria carne. Não havia perfume que afastasse o odor. Estava morto e sabia.

Chorou anos seguidos. Da soleira da porta fez túmulo. Ao seu redor, das lágrimas brotava vida, vida de uma natureza sanguessuga, usurpadora das lágrimas do morto. O pé fez-se raiz. Enterrou-se, fundo. Casa, morto, alma, vazio. Fez-se corpo presente e pesado na entrada da casa que amou. Fez-se forte e ramagem da soleira da porta que já não abriria nunca mais. Prendeu-se forte a paredes que exibiam mais histórias do que aquela que fingiu viver. Prendeu-se ali, exilado da vida que renegou.


Desce do carro. Outra carona, outro desconhecido, outras horas em silêncio se contorcendo no banco em uma estrada inacabável. Sente o frio já previsto e se culpa por ter esquecido os casacos. Em cima da cama. Em outra cidade.

Junta as malas, agradece. Paga. Caminha em direção ao ponto. Ponto de ônibus. De chegada, de partida. Encosta na mureta e espera. Liga o telefone, disca. Cobra “Cadê você? Já estou aqui”. Em resposta “10 minutos”. Já se passaram vinte. Pensa de novo nas blusas que deixou em cima da cama. Pragueja. 30 minutos.

A nova carona chega. Entra no carro, cumprimenta, silencia. Está a 250km de lugar nenhum. Não entende pra onde volta ou pra onde vai. Se arrepende por chegar. “Estou bem”. Tudo certo? “Tudo”. Encurta o assunto, fecha o vidro. Busca o cigarro que não pode fumar. Pragueja, mentalmente.

Escuta as novidades. Processa o que escuta, soma ao que leu e se arrepende por vir. Não se interessa por aquilo. Deixa que as palavras se afundem no silêncio. Não se preocupa. As lágrimas esquentam os olhos. Não caem. Seriam só outras lágrimas. Já secaram.

A paisagem corre pelo vidro do carro. “Tá com fome? Se tiver precisamos pedir algo”. Só o velho descaso, desinteresse? Não sabe, diz que não tem fome, silencia de novo. “Tá bravo?”. Não. Arrependido, apegado. “Só cansado, não dormi direito”.

Chegam. Desce, abre, fecha. Liga a TV. A novela fora de horário preenche os vazios que conversa nenhuma tenta cobrir. Serve-se de um iogurte. Insosso. Deita e espera. Logo o final da semana finda finalmente. Logo chega onde não quer. Logo, pega outra carona.

Do pó ao pó

Já não sentia os sentidos. Sentou-se e chorou. Ali, na soleira da porta, desolado e entregue a ondas soluçantes, afogado nas lágrimas que não cansariam de cair e molhar o chão e deixar marcas em sua camiseta e rasgá-lo por dentro, sangrá-lo das raivas engolidas. Alienou-se num céu turvo de olhos cerrados e vermelhos. Visão confusa, difusa, lacerante de um cenário seco, natural, mórbido e cotidiano. Viu-se mais uma vez ali, na casa que costumava amar, na vida que costumava ter, nos costumes que costumava vestir e chorou.

Chorou pois era tudo que tinha. Não tinha secado, mas tinha morrido. Morreu dia-a-dia, morreu em cada garfada. Deixou a vida esvair em cada passo em direção a porta. Morreu nos cigarros que apagou, nos copos que terminou, morreu em cada contrato fechado, em cada assinatura refeita. Chorava agora, ali na soleira da porta, o próprio enterro. Era o caixão, era o defunto e era a morte. Era o verme que putrificava sua própria carne. Não havia perfume que afastasse o odor. Estava morto e sabia.

Chorou anos seguidos. Da soleira da porta fez túmulo. Ao seu redor, das lágrimas brotava vida, vida de uma natureza sanguessuga, usurpadora das lágrimas do morto. O pé fez-se raiz. Enterrou-se, fundo. Casa, morto, alma, vazio. Fez-se corpo presente e pesado na entrada da casa que amou. Fez-se forte e ramagem da soleira da porta que já não abriria nunca mais. Prendeu-se forte a paredes que exibiam mais histórias do que aquela que fingiu viver. Prendeu-se ali, exilado da vida que renegou.


Parada

Desce do carro. Outra carona, outro desconhecido, outras horas em silêncio se contorcendo no banco em uma estrada inacabável. Sente o frio já previsto e se culpa por ter esquecido os casacos. Em cima da cama. Em outra cidade.

Junta as malas, agradece. Paga. Caminha em direção ao ponto. Ponto de ônibus. De chegada, de partida. Encosta na mureta e espera. Liga o telefone, disca. Cobra “Cadê você? Já estou aqui”. Em resposta “10 minutos”. Já se passaram vinte. Pensa de novo nas blusas que deixou em cima da cama. Pragueja. 30 minutos.

A nova carona chega. Entra no carro, cumprimenta, silencia. Está a 250km de lugar nenhum. Não entende pra onde volta ou pra onde vai. Se arrepende por chegar. “Estou bem”. Tudo certo? “Tudo”. Encurta o assunto, fecha o vidro. Busca o cigarro que não pode fumar. Pragueja, mentalmente.

Escuta as novidades. Processa o que escuta, soma ao que leu e se arrepende por vir. Não se interessa por aquilo. Deixa que as palavras se afundem no silêncio. Não se preocupa. As lágrimas esquentam os olhos. Não caem. Seriam só outras lágrimas. Já secaram.

A paisagem corre pelo vidro do carro. “Tá com fome? Se tiver precisamos pedir algo”. Só o velho descaso, desinteresse? Não sabe, diz que não tem fome, silencia de novo. “Tá bravo?”. Não. Arrependido, apegado. “Só cansado, não dormi direito”.

Chegam. Desce, abre, fecha. Liga a TV. A novela fora de horário preenche os vazios que conversa nenhuma tenta cobrir. Serve-se de um iogurte. Insosso. Deita e espera. Logo o final da semana finda finalmente. Logo chega onde não quer. Logo, pega outra carona.

Ótica mental cheia de hortelã!

Café forte e sem açúcar!